Alguém como ele

Nasceu em tempos um rapaz. Ora, caro leitor, tal acontecimento pode parecer-lhe de tal maneira banal, que seria natural que o nascimento de um infante qualquer não lhe suscitasse sentimento de surpresa algum. Mas conto-lhe eu, desde já, que este rapaz era inédito. Vá, já sei, pergunte lá:

              -Não o são todos?

              Pois, a verdade é que não quero desvalorizar nenhum menino-de-ouro dos seus pais que seja único e destinado a grandes feitos, mas nunca conheci eu outra criança que nascesse numa churraria.

              Sua mãe trabalhava lá vinte e quatro horas por dia e não tinha tempo para casualidades, como deslocar-se ao hospital mais próximo para o parir, pelo que foi cuspindo o miúdo membro a membro, enquanto recheava um churro com doce de leite.

              Quando era nova, desenvolvera uma obsessão por aquela sobremesa e dedicara a sua vida à produção, venda e ocasional degustação da mesma. Portanto, caro leitor, não seria assim tão disparatado que, colando os bracinhos de seu filho ao seu tronco despido com o saco de recheio que segurava com a mão direita, a senhora decidisse chamar ao seu herdeiro aquilo que tinha na outra mão: Churro.

              Devido à quantidade estonteante deste doce que sua mãe ingerira enquanto estivera grávida e por não ter mais nada disponível no outro lado à beira da estrada onde esta trabalhava, Churro fez jus a seu nome e recusou-se a comer qualquer outra coisa que não churros, por força de hábito (é que a nós, humanos, custa-nos muito desfazermo-nos daquilo a que estarmos acostumados). Assim, a sua alimentação consistia unicamente em farinha frita e a sua mãe arranjava inúmera maneiras criativas de satisfazer os caprichos do filho sem que ele enjoasse da comida à qual ela era tão devota.

              Como a sua mãe não tinha disponibilidade para o levar à escola e atendendo a que esta instituição não cumpria com a sua dieta, Churro nunca pusera lá os pés e crescera apenas com o cheiro a óleo queimado e a chocolate de avelã. Portanto, à medida que crescia, sentia cada vez mais falta da interação social a que nunca tivera acesso. Vários clientes passavam por lá, uns com pressa, outros sem destino, uns com fome, outros por gulodice ou nostalgia. Ainda assim, Churro sentia-se altamente distante deles, com noção de que, em casa, se alimentavam de outras coisas.

              Chegou um dia à churraria, porém, uma família numerosa cuja filha mais nova lhe chamou a atenção. As mães dela pediram churros para todos menos para ela, confessando que menina era, e uso agora o vocabulário delas, “esquisita a comer”. Quando se estavam a afastar, Churro irrompeu numa correria (que lhe custou, lembre-se, leitor, de que ele raramente saía da churraria e nunca enfrentara o pesadelo que é uma avaliação de resistência a Educação Física) e, meio envergonhado, agarrou o braço da mais nova (que teria mais ou menos a sua idade), balbuciando:

              – Como te chamas?

              – Maria. – respondeu, sem hesitação, a rapariga.

              Churro irradiava felicidade.

              -Queres sair comigo? – perguntou-lhe ele, mais confiante.

              -Está bem. – concordou Maria, encolhendo os ombros com ligeira indiferença.

              Marcara um encontro no jardim da cidade, onde fariam um piquenique.

              -Sei que não comes normalmente. – avisou Churro – Não te preocupes que trato de tudo.

              Ela agradeceu e juntou-se às mães e aos irmãos (eram mais que as mães!), que devoram os deliciosos churros.

              Por esta altura, caro leitor, pode estar a achar que Churro era mas era um grande anormal e canibal! Eu sei a que soa, mas embora incorporado com doce de leite, ele era tão humano como qualquer um de nós e queria apenas ser amado.

              No dia combinado, vestiu-se (sem avental) e apareceu com uma hora de antecedência.

              O jardim era lindíssimo. O chilrear magnífico dos pássaros encantou o rapaz, que estava habituado ao barulho ensurdecedor das máquinas de fritar. À sua volta, pessoas passeavam alegremente. Churro estendeu, então, uma toalha sob um carvalho robusto, repleto de ramos e folhagem e esperou.

              Maria chegou e sentou-se com ele. Trocaram umas breves palavras e depois Churro retirou de um cesto que trouxera churros (claro está) e a comida para Maria. No entanto, a miúda ficou altamente ofendida por lhe ser oferecido um pacote de bolachas Maria para almoçar.

              – Posso não gostar de churros, mas como uma boa sopa! Não sou uma criança! -exclamou, atirando-lhe as bolachas à cara. Churro nem teve tempo de expressar a sua confusão: ela deixou-o lá sozinho.

              Por isso, leitor, é que dizia no início que Churro era inédito. Nesse dia, percebeu que se enganara, pois estava, de facto, sozinho neste mundo, onde nem elevados níveis de açúcar no sangue igualam ter recheio de doce de leite a correr nas veias. Churro achou este facto insuportável e, tal com sua mãe o cuspira, membro a membro, Churro devorou-se, começando pelos bracinhos que lhe tinham sido colados em bebé. Parece que, afinal, canibalismo estava na sua natureza, como notara o leitor.

Maria Soares, 10.º A