O poder transformador do Amor

Inspirados pela leitura de A Queda de um Anjo, de Camilo Castelo Branco, os alunos de Literatura Portuguesa participaram numa oficina de escrita criativa sobre “O poder transformador do amor”.
Hoje partilhámos o texto da Sofia Ferreira, onde o tema é tratado com sensibilidade e ternura. 

Duarte vivia numa zona calma da cidade. Morava no quinto andar de um prédio situado à beira de um lago. Todos os dias descia os cinco andares de escadas e com ele levava um saco cheio de pão para distribuir pelos patos que nadavam. Ia comprar o jornal ao quiosque, sentava-se no banco castanho mais próximo da água e ficava a ver os patos lutarem por cada pedacinho de pão. Quando escurecia, levantava-se, deitava o saco de plástico no respetivo ecoponto e voltava para casa. Já se tornava difícil para um homem de cinquenta e seis anos subir cinco andares de escadas, mas Duarte recusava-se a ir pelo elevador, pois este lembrava-o dos bons momentos que teve com a falecida mulher, Mariana. Chegava à porta do apartamento, limpava os pés no tapete e fazia chiar a porta. Aquecia a comida do dia anterior no micro-ondas e enquanto esperava, distraía-se a olhar para as fotos da mulher que se encontravam espalhadas por toda a casa. Comia a refeição pré-aquecida, não lhe sabia muito bem, mas também não se queixava, nada lhe sabia bem desde o falecimento de Mariana. Depois do jantar ligava a televisão nas televendas e ficava assim, a olhar para o vazio, perdido nos pensamentos. Acabava por se cansar e a ir para a cama. Depois de se enfiar nos cobertores gelados, pegava no livro preferido de Mariana e abria na página onde estava o separador. Já era a quinta vez que li o livro, mas também não lhe apetecia trocar. Era esta rotina de Duarte, todos os dias fazia as mesmas coisas, os mesmos movimentos. Já não trabalhava, despedira-se há dois meses atrás, “já não encontro motivação no que faço” foram as palavras que preferiu ao chefe antes de pegar na moldura da mulher, que era a única coisa que tinha em cima da secretária, e sair.

  Num dia feio, de nuvens carregadas, Duarte encontrava-se, como sempre, a dar pão aos patos quando ouve um ganir bem perto dele. Ignora, mas quando o ruído se torna mais alto, volta à cabeça para o lado esquerdo e vê um cãozinho, cheio de fome e pedir a sua atenção. Mal-encarado, voltou a olhar para a frente e a atirar pão aos patos. O barulho volta a perturbá-lo, por isso, com violência, arranca um pedaço de pão e atira o para a zona onde se encontra o animal, só para ele se calar. Com satisfação, o cão come o pedaço num ápice e chega-se para mais perto de Duarte, começando outra vez a latir. Este, sem paciência, levanta-se e dirige-se para casa. Só passados alguns metros, se apercebe que o cão o seguia. Ignorou “este rafeiro há de cheirar qualquer coisa e deixar-me em paz de vez” pensou ele. Contrariamente, o cão continuou a segui-lo, subiu os cinco andares de escadas com ele e sentou-se à porta. Duarte abriu-a, pôs um pé à frente para o cão não passar e fechou a porta, deixando-o cá fora, aninhado em cima do tapete que já em tempos dissera “welcome”. Ainda não era meia-noite e já se eu via o cão a ganir, provavelmente tinha fome. Duarte pega nos restos de pão que sobraram e dá os ao animal.

No dia seguinte, quando Duarte saiu de casa para ir comprar o jornal, o cão continuava deitado no tapete e quando o viu levantou-se e abanou a cauda, provavelmente à espera de mais pão. Duarte segue em frente, mas o cão vem atrás. Visto que vai ser assim o dia todo, limita-se a andar e tenta esquecer que o maldito está mesmo atrás de si. Quando se senta no banco, o cão deita-se a seus pés e com a barriga virada para cima rebola na relva. Duarte ri e inclina-se para fazer-lhe uma festinha. “Quando é que me ri pela última vez? Claro que os patos à luta têm a sua graça, mas rir genuinamente? Só a Mariana me conseguia pôr a sorrir e, pelos vistos, este cão também”. Foi este pensamento que invadiu a cabeça de Duarte durante toda a tarde. Como era de esperar, o cão seguiu-o, mas desta vez Duarte deixou a porta entreaberta para o cão entrar. Desabituado àquele lugar, segue Duarte para todo o lado. Ele até gostava da companhia do maldito, fazia-o rir sem se sentir culpado por se estar a divertir sem a mulher. Os dias passaram, já se tinham acostumado a companhia um do outro.

Ao lado do retrato da mulher havia agora o retrato de um cão, mas um cão especial.

Sofia Ferreira, 11ºD

Imagem: Unsplash