O VÍCIO DOS LIVROS

«Ler é um ato de poder»

De pé, na prateleira, desarrumadamente arrumado, da livraria Centésima Página, parecia aguardar uma boleia. Olhei para ele, «chamou por mim», dei-lhe a desejada boleia, mas foi ele que me levou a viajar. Os livros «chamam por nós» desde que estejamos disponíveis para os ouvir e, principalmente, dispostos a lê-los dedicadamente. 

O Vício dos Livros chamou por mim, não pela fama do seu multipremiado autor, Afonso Cruz, (que para além de escritor é ilustrador e músico), mas principalmente pelo seu título. Ter o vício dos livros é diferente de ter o vício de ler. Podemos ler compulsivamente legendas de filmes, rótulos nos supermercados, bulas de medicamentos ou letras de música e não sermos viciados em livros. Como refere Alberto Manguel, em Uma História da Leitura, dirigindo-se aos leitores de livros, «ler é um ato de poder», e ler o Vício dos Livros torna-nos mais poderosos e mais cultos. Não nos «magoa ou esfaqueia» (que é, segundo Kafka, o que um livro interessante deve fazer), mas é «vital e espermático» (usando palavras de Emerson quando se refere a livros), ficando o leitor,  quando o fecha,  grávido de prazer e de  espanto .

Esta obra, a quem dei boleia, não começa por «era uma vez» (poderia até começar por «era uma voz»…), nem finaliza com «e foram felizes para sempre» (e por falar em felizes, e como relembra Afonso Cruz, citando Jules Renard, «quando penso em todos os livros que tenho para ler, tenho a certeza de ainda ser feliz»), não é um romance, não é um diário e muito menos um policial. É antes um conjunto de reflexões, memórias, relatos históricos, colheitas sobre livros e viciados em livros. Afonso Cruz, aperta a nossa mão e transporta-nos para os tempos antigos do tirano Dionísio, do faraó Ramsés II, do poeta Eurípides e muitos mais. Leva-nos a passear por Bogotá; pelo terceiro pulmão de Bagdade; pelo Kuwait, onde encontramos jornalistas e escritores de outras culturas e ouvimos esta epifania « – comecei a ler e libertei-me», proferida por uma escritora islâmica que não usava burca e escrevia sem prisões. Com Afonso, percorremos bibliotecas, estórias e até batemos à porta da prisão de Santa Cruz do Bispo para visitar um condenado por homicídio, que de prisioneiro não tem nada, simplesmente porque lia, e lia muito.

Esfolhear as páginas deste livro é como encontrar trevos de quatro folhas. Sentimos uma sorte inexplicável por «dialogarmos» com tantas pessoas tão plenas e interessantes, como é o caso da escritora Gabriela Cabal, que numa conferência proferiu: «um leitor tem a vida muito mais longa do que as outras pessoas porque não morre até acabar o livro que está a ler. É que a morte também é leitora, por isso, aconselho a que andem sempre com um livro na mão, porque quando a morte chega e vê o livro, espreita para ver o que estamos a ler e distrai-se». Muito bom!

Afonso Cruz escreve que «os livros são seres pacientes, imóveis nas suas prateleiras, com uma espantosa resignação, podem esperar décadas ou séculos por um leitor». Garanto-vos que este livro não tem de esperar nem anos, nem meses, nem semanas para ser lido. Sai diretamente da prateleira para a mesa de cabeceira, que é onde está o meu exemplar, e será lido e relido várias vezes, como eu já o fiz e farei muitas mais vezes. Acresce que, esta inefável escrita está adornada por várias ilustrações, feitas por Afonso Cruz, que convidam à leitura em «silêncio e recolhimento» pois um «livro pede a nossa atenção total e exclusiva».

Em suma, este livro não «esfaqueia», mas faz florir e primaverar o leitor. E por falar em flores, será este o título da próxima obra que lerei de Afonso Cruz, pois já chamou por mim, algures perdida numa biblioteca. Flores que não colherei, mas cujas pétalas, em forma de letras lerei com vagar e posse, pois como defende Cruz «a leitura é um processo lento e muitas vezes ciumento e possessivo». E mais não digo!

Autora: Célia Gomes, mãe de Margarida, Joana e Pedro Ribeiro.