Inspirados pela leitura de A Queda de um Anjo, de Camilo Castelo Branco, os alunos de Literatura Portuguesa participaram numa oficina de escrita criativa sobre “O poder transformador do amor”.
Hoje partilhámos o texto da Mariana Ferreira, onde o tema é tratado com recurso à ironia e ao humor, à semelhança do que acontece na obra camiliana.
Sempre ouvi dizer “Se queres amor, compra u precisava de amor, mas não podia enfiar um cão no meu minúsculo apartamento, arranjei um gato. Bem, uma gata, na verdade. Uma gata assanhada, zarolha e quase sem pulgas, a que a loja de animais ao fundo do quarteirão pusera um desconto imperdível. Claro está que levei o bicho para casa sem pensar duas vezes, satisfeita por o meu desejo de afeto animal me ter saído tão barato.
Infelizmente, a Nellie zarolha (nome inspirado que lhe dei) não era do tipo afetuoso. Nas primeiras semanas, qualquer tentativa de a acarinhar ou de lhe pegar ao colo era invariavelmente retribuída com uma mordida ou um arranhão, e acabei por gastar boa parte das minhas parcas economias em materiais de primeiros socorros. Pior, a malvada parecia ter-se convencido de que era a proprietária de cada centímetro do meu sofá, no qual cravava constantemente as unhas, e bufava-me sempre que me aproximava com intenções de me sentar. Quando se tornou claro que ela não me respeitava o suficiente para que eu pudesse discipliná-la, resolvi recorrer ao suborno e comprei-lhe algumas latas de salmão do Pacífico, mais caras do que o atum de marca branca que lhe dava anteriormente.
A partir daí, a nossa relação mudou completamente. A Nellie passou a tolerar a minha presença e, atrevo-me a dizer, afeiçoou-se a ela. Cedeu-me um lugar no sofá e chegou até a instalar-se no meu colo. Deitou-se em cima do meu computador, motivando-me a pegar novamente na tese de mestrado e a fazer alguma coisa da minha vida. Em geral, ter a Nellie por perto ajudou-me a tornar-me uma versão mais aceitável de mim mesma. Isto até o Sr. Bigodes, o arruaceiro gato do meu insuportável vizinho do terceiro andar, ter atraído as atenções do único olho da minha adorada Nellie.
Aí, o amor que conquistara a tanto custo com incontáveis latas de salmão arranjou um novo destinatário. Senti-me traída, é certo, o que que o raio do gato podia dar-lhe que eu não pudesse?! Uma ninhada, aparentemente. E enquanto testemunhava o milagre da vida, o expoente máximo em que as forças do amor podem resultar no reino animal, concluí que devia mesmo ter-me ficado pela compra de um peixinho dourado.
Mariana Ferreira – 11ºD