Compreendemos, também, que a nossa infância e o nosso passado podem estar contra nós, já que relembram uma promessa de tentarmos ser o melhor possível que, provavelmente, não cumprimos. No entanto, essa mesma infância, segundo o autor, é a base da nossa identidade e devemos regressar a ela numa tentativa contínua de «apaziguar o presente e magnificar o futuro».
Joana Faria
Quando me pediram para escrever sobre um livro que li nas férias, nem hesitei. Apesar de ter viajado para os Andes com o Mario Vargas Llosa ou de ter entrado no mundo da espionagem com o John LeCarré, foi Contra Mim de Valter Hugo Mae que marcou as minhas férias, a nível literário.
Esta obra, vencedora do Grande Prémio do Romance e Novela da APE / DGLAB de 2020, é preciosa, não só por dever a sua autoria a um dos maiores escritores da língua portuguesa da atualidade, mas, principalmente, por constituir um retrato autobiográfico assente em memórias da infância que podiam pertencer a qualquer um de nós.
Na companhia do autor, vamos observando o mundo com a ingenuidade e a pureza de uma criança. Viajamos desde Angola para habitar em Paços de Ferreira, conversamos com um irmão morto que nunca conhecemos (mas amamos), receamos e admiramos animais tão simples como o louva-a-deus ou o pirilampo, ganhamos uma nova família, mas, acima de tudo, aprendemos a olhar para o que nos rodeia através dos olhos de um poeta.
Trata-se de um livro inesquecível e a proximidade geográfica da ação acentua esse facto. Não podemos deixar de sorrir quando lemos reiteradamente a frase «Caxinas para capital.», nem de sofrer com os perigos que esperam os pescadores no mar. Todavia, é o lirismo e a emoção que nos fazem ler, reler e voltar atrás infinitas vezes para nunca esquecermos que «Se nos admitirmos à limpidez típica das crianças no instante em que nos conhecemos, talvez possamos debelar metade dos males, educados para a compaixão essencial como todas as crianças estão.»
Compreendemos, também, que a nossa infância e o nosso passado podem estar contra nós, já que relembram uma promessa de tentarmos ser o melhor possível que, provavelmente, não cumprimos. No entanto, essa mesma infância, segundo o autor, é a base da nossa identidade e devemos regressar a ela numa tentativa contínua de «apaziguar o presente e magnificar o futuro».
Contra mim de Valter Hugo Mãe é, sem dúvida, uma obra incontornável, pecando apenas pela melancolia que deixa em qualquer leitor no momento em que fecha o livro depois de terminada a última página.